Postamos hoje mais uma colaboração do Prof. Sinvaldo
O bairro de Realengo tem suas histórias, crônicas e memórias. Tem também seus personagens pitorescos, monumentos significativos, homens e mulheres notáveis.
As memórias e crônicas da Escola Militar de Realengo aparecem entremeadas de situações jocosas e apelidos bizarros. Um deles, o “Lhufas”, que na verdade se chamava Aristides, era uma das figuras mais queridas daquela academia.
Encarregado do corte de cabelos de todo o corpo de cadetes, Aristides estava sempre pronto para resolver toda sorte de dificuldades. Era o verdadeiro quebra-galho de todas as horas, oferecendo, desde pequenos aviamentos emergenciais, como botões, agulhas, linhas, esparadrapo, sabonete, creme e lâminas de barbear, pasta dentifrícia, cadarços e pentes de bolso, até sua mochila repleta de guloseimas, disputadas a pau e pedra, pelos esfomeados cadetes, após longas marchas e cansativos exercícios hípicos.
Segundo Hilnor Canguçu Taulois de Mesquita, que estudou na Escola Militar de Realengo, e foi declarado aspirante a oficial da Arma de Infantaria em 22 de novembro de 1937, o “Lhufas”, que era baixinho, de tez parda, cabelos crespos já grisalhos e começando a rarear, foi a figura mais popular de toda a Escola.
Além de quebra-galho, de esbanjar simpatia e da cordialidade como tratava indistintamente a todos, o barbeiro Aristides era um piadista de verve acentuada. Sempre que chegava ao alojamento, os cadetes queriam logo ouvir o seu repertório inesgotável de anedotas inteligentes, picantes e saborosíssimas.
Por ser encarregado da barbearia dos cadetes, lhe era franqueada a presença nas manobras, acampamentos, marchas e exercícios de longa duração, realizados pela Escola Militar de Realengo. “Lá ia também o Lhufas, de culote e camisa de brim cáqui, acompanhando o Batalhão de Infantaria, marchando conosco, transportando enorme mochila...”
Hilnor de Mesquita, na obra intitulada “Memórias do Realengo”, organizada por João de Abreu Lins, recorda um episódio ocorrido nas manobras de Taubaté, em 1936.
“Estávamos acampados e não sei como, correu a notícia de que havia nas imediações, uma “venda” que oferecia uma “pinga” verdadeiramente deliciosa.
“Sair do estacionamento, não era possível. Mas lá estava o providencial “Lhufas”, a quem vários cadetes entregaram os cantis, para que os enchesse de “pinga”. Ao passar por uma porteira junto à qual papeavam alguns “frangos”, o prestativo barbeiro foi interpelado por um dos tenentes:
“Aonde vai, Lhufas, com todos esses cantis?”
“Seu tenente, os cadetes não me dão uma folga. Vou encher estes cantis numa bica de água fresquinha, que existe aqui perto...”
“Ao regressar o Aristides, lá continuavam os oficiais, no seu “P.P.” junto à porteira. Cada um deles pediu um cantil, dele tomando um gole... de deliciosa água fresca, que era o que realmente continham os cantis.
Subindo a encosta, o Lhufas – já perto do acampamento – esvaziou uma por uma as vasilhas. E, ao passar de novo pelo grupo de oficiais, lamuriou-se dizendo:
“Pelo jeito, não vou descansar tão cedo... Agora outros também querem água... Só vou folgar quando os cadetes recomeçarem o exercício; espero que seja logo, se os senhores me ajudarem”.
“Ao voltar, desta vez com os cantis cheios de “água que passarinho não bebe”, o Lhufas já não encontrou na porteira o grupo de desconfiados “frangos”, pois estes, da mesma forma que os cadetes, haviam atendido ao chamamento da corneta, que a todos estridentemente convocava para dar início aos trabalhos do dia...”
E assim, o fígaro da Escola Militar de Realengo, ia se tornando amigo de todos. A ponto de construir sua casa no bairro, com a ajuda mensal e espontânea de todos os cadetes do 3º ano, que contribuíram com 1 mil réis, abatidos do soldo na hora de receber o pagamento.
Hilnor, que, anos depois, voltaria à Escola Militar do Realengo já como oficial superior, reencontraria o barbeiro Aristides octogenário.
“Recordo-o, porém, como um homem bom e prestativo, inteligente e espirituoso, modesto... mas que saiba, no fundo de sua alma, ser grato para com aqueles que mostraram ser seus amigos”, concluiu Hilnor Canguçu de Mesquita.
Sinvaldo do Nascimento Souza
Historiador